Cadê meu feedback?

Cadê meu feedback?

Era final de 2019 e eu já estava há pouco mais de 1 ano como gestor. Era um time pequeno, com menos de 15 pessoas. Estávamos azeitados, funcionando bem, mas tinha uma funcionalidade que os clientes viviam reclamando e que estava bem lá pra frente no backlog. Era a geração de extrato bancário. Decidi tirar um tempinho e fazer uma versão meio crua e rápida. Dois dias, no máximo, pensei.

Depois de duas semanas (pois é), consegui entender o bizarro formato OFX e shipar uma solução simplista: o cliente pedia pro atendimento, que pedia pro engenheiro, que, por sua vez, batia num endpoint, pegava a URL do arquivo e mandava pro atendente, que, enfim, mandava de volta pro cliente o arquivo. Vixe. Como disse, versão crua. Por ser tudo manual, esse processo gerou vários erros aqui e ali, mas era o suficiente pros clientes usarem e saberem se estava funcionando. E estava, mas...

Naquele momento, vendo os clientes contentes com a funcionalidade, me senti satisfeito, mas uma sementinha foi plantada na minha cabeça. Uma dúvida, na verdade: "Por que tá cada vez mais raro eu sentir que fiz algo legal? Algo concreto que eu me orgulhe?".

Essa questão apareceu porque essa tarefa do extrato bancário me fez sentir a adrenalina, a empolgação (ou ansiedade?) de fazer algo do zero. De criar algo com as minhas mãos e ver chegando nas mãos de outras pessoas. Essa é uma sensação bem comum entre programadores, mas, como gestor, fazia um tempo que eu não sentia. E, até esse dia, eu não tinha percebido quanta falta isso me fazia*.

Um ano e meio depois desse episódio, eu já tinha deixado a gestão e voltado a ser contribuidor individual (especialista). Não porque considerava o trabalho de gestão ruim ou desimportante. Pelo contrário, acabei respeitando bem mais o papel de gestor depois de tudo isso.

Mas precisou do distanciamento dado pelo tempo, muita reflexão e um pouco de terapia, para entender por que o trabalho de gestor não me energizava como o trabalho de programação. O que rolou então?

Sinais

Escrevo o esqueleto de um teste unitário. Adiciono uma asserção. No terminal, o teste falha. O código já está aberto. Adiciono um if. O compilador reclama. Tem um typo dentro da condição do if. Corrijo. Compilador está feliz. Testes passam. Subo o código no git. Pull request aberto no Github. Um colega revisa e aprova. Faço o merge. Código chega em produção. Aviso o suporte: funcionalidade tá em produção. Os clientes ficam sabendo e alguém do atendimento me manda uma citação: "Obrigado pelo extrato!!! Melhorou muito minha vida!".

Esse é um fluxo típico de um programador. Só nessa descrição foram 7 momentos de feedback. 7 sinais me dizendo se eu estava no caminho certo ou no errado. 7 pausas pra eu respirar e decidir qual o próximo passo.

E, no fim, pra coroar, recebo um último sinal de que eu tinha acabado: um usuário feliz. Tinha dado tudo certo. A tarefa estava Done. Feita. Terminada. Passei de fase. Ganhei. Eu podia me deliciar com o disparo de dopamina no meu cérebro por ter shipado algo no mundo. Criei algo do zero com minhas mãos e recebi a recompensa: o troço estava funcionando e as pessoas gostaram.

Voltar atrás

Depois de ter terminado a tarefa de extrato, continuei o trabalho de gestor. Naquela época, outras dúvidas passaram a surgir no meu dia a dia: o que tô fazendo mesmo? O que eu fiz de bom hoje? O que eu fiz que ajudou o time? O que eu fiz com as minhas mãos?

Racionalmente, eu conseguia responder essas perguntas de formas completamente válidas e satisfatórias. Mas ainda assim, sentia um vazio, um mééh: Qual era exatamente o resultado de tudo que eu fazia?

Como programador, eu recebia diariamente dezenas de sinais me dizendo se eu estava no caminho certo. Como gestor, passei a receber menos sinais, e os que chegavam eram bem menos claros. Em papéis de gestão, em geral, você vai aumentar seu impacto na organização. Mas o impacto é muito mais difuso. Mais abstrato. Não é um artefato, um código, uma "coisa". Como gestor, o que você está "construindo" são as pessoas, os times, a organização. E é muito mais fácil olhar as linhas de código que você escreveu, ou arquitetura que desenhou, do que enxergar sua influência direta no comportamento de pessoas.

Quando você mentora um programador, por exemplo, o real impacto normalmente não é visto em dias, nem semanas. Normalmente é em meses, talvez anos. E, ao longo desse tempo, nem sempre fica claro se as mudanças percebidas são influência sua de fato e, se são, quão forte ela foi.

Feito

Pra alguém inseguro e com uma autocobrança alta como eu, a perda desses sinais, desses feedbacks diários, que continuamente validavam meu trabalho, foi devastadora. Fiquei cada vez mais cansado, confuso sobre o que fazer e, principalmente, sem energia.

Voltar a ser contribuidor individual era inevitável. No começo de 2021, passei a ser Staff Engineer e consegui de volta boa parte dos meus queridos sinais indicando se estou fazendo algo que preste (será se me cobro muito?).

Nessa posição acabo não programando tanto quanto antes, por isso os sinais acabam não sendo tão instantâneos quanto já foram um dia. Mas, mesmo demorando alguns dias ou semanas, eles, inevitavelmente, aparecem pra validar o meu trabalho.

Talvez minha dependência desses sinais seja por conta da minha ansiedade. Talvez seja uma dificuldade em reconhecer a importância de mudanças incrementais. Talvez só não tenha curtindo ser gestor. Talvez eu só goste demais de codar e construir coisas. Ou de "acabar" elas. Assim como esse texto, que acabo de terminar.

Texto feito. Done. Terminado. Shipado. Entregue.

* Um detalhe curioso dessa história é que um time continuou tocando e desenvolvendo a funcionalidade, mas a galera detestou tanto o nome que eu escolhi pro serviço que eles tiveram o trabalho de renomear o serviço em produção só pra usar outro nome. O novo nome do serviço para extratos bancários: Pomarola. O meu era pior mesmo.